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Polí­ticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?

By José Augusto Cabral Barros
2004

Os acordos ADIPC e seus reflexos no acesso aos medicamentos


Nos anos 90, alterações significativas ocorreram no plano políticoeconômico internacional. Essas alterações consolidaram propostas vinculadas ao chamado neoliberalismo tendo como pressupostos categorias conceituais, com enormes repercussões práticas, sobretudo para os países subdesenvolvidos tais como: ‘estado mínimo’, ‘predomínio das leis de mercado’, ‘desregulamentação’, ‘privatização’. Fazendo, hoje, uma avaliação objetiva chega-se à conclusão de que, durante a década de 1990, ocorreu uma polarização gigantesca do poder e da riqueza mundiais. E, no início do século XXI, pode-se considerar ser consensual a idéia de que houve retumbante fracasso na promessa … “sarado”, em 65% das situações, foram indicados ‘massas, polivitamínicos e aminoácidos’; em uma fração bem menor do que o esperado, (4% dos balconistas) foi sugerido o uso de esteróides anabolizantes, mas uma proporção similar indicou ‘outros hormônios’. Os estimulantes do apetite apareceram em 6,5% das indicações. “globalitária” de um crescimento universal, eqüitativo e sustentado. Neste período, na verdade, a América Latina talvez tenha sido a região onde mais se acreditou e apostou na “nova era”. Como conseqüência, atualmente, em vários países do continente, é evidente o tamanho do fracasso e da frustração, sendo o que vem se passando no setor Saúde (vide item 3.1), apenas um exemplo, entre tantos que poderíamos evocar para confirmar a veracidade da assertiva. Vários estudos vêm sendo realizados tentando detectar o impacto das políticas de descentralização e privatização no setor saúde, perpretadas em países como Colombia, Chile, Costa Rica (Alvarez, 2002; Ugalde & Homedes, 2002a, 2002b). A constatação feita por Alvarez, com respeito ao caso particular da Colombia, certamente pode ser transposta para outros países: no contexto do que o autor designa como “falácia neoliberal-neoclássica em saúde”, existiria um comprovado aumento do gasto total em saúde sem que se tenha atingido as metas de cobertura, nem superado as iniqüidades relacionadas à capacidade das pessoas de pagarem pelos serviços (Alvarez, 2002). Além dos exemplos na América Latina, os chamados “ajustes estruturais”, também fracassaram nos processos de transição do Leste europeu e nos de alguns países asiáticos. Uma apreciação minimamente crítica sobre as políticas econômicas centradas na privatização, na liberação comercial unilateral e no desmonte de políticas públicas estratégicas, chegará à conclusão de que as mesmas incrementaram a dependência em lugar de favorecer a tão decantada interdependência. Em relatório recente (World Development Report, o Banco Mundial efetua autocrítica e, já na sua introdução se declara que, na maioria dos países, a maior parte dos investimentos oficiais em saúde e educação atende os 20% mais ricos mais que os 20% mais pobres. Ao contrário de relatórios anteriores, o mercado deixa de ser visto como a panacéia para os problemas de crescimento e pobreza de um país e a ação do Estado assume relevância, fazendo, supreendemente elogios à atuação dos governos de Cuba e da China, afirmando-se textualmenete que “assim como democracias em pleno funcionamento não garantem que os pobres se beneficiarão dos serviços públicos, alguns Estados de partido único conseguem bons resultados em saúde e educação” (Soliani, 2003). Em novo estudo, ainda mais recente – Desigualdades na América Latina: Rompendo com a História – a América Latina é a região do mundo onde a desigualdade é mais gritante, não tendo saído do lugar nos últimos 50 anos. O trabalho cruzou 52 pesquisas realizadas em 3,6 milhões de domicílios de 20 países, entre 1990 e 2001, concluindo que os 10% mais ricos da região detêm 40% da renda global, ao passo que, os 10% mais pobres ficam com 1,6%. Afirma-se que “com exceção da África subsaariana, a América Latina é mais desigual em qualquer indicador: renda, gastos com consumo, influência política, poder de decisão e acesso a serviços como saúde e educação” acrescentando, ainda que, “as cinco últimas décadas tiveram ciclos de forte expansão econômica e recessões, baseados no consumo interno ou nas exportações, intervenções do Estado e reformas liberais; ditaduras e democracias. Essas mudanças não modificaram em nada a situação de nenhum dos países em termos de distribuição de renda” (Canzian, 2003). Certamente a globalização, o que tem conseguido, em grande medida, é privilegiar a eficiência econômica e o aumento da produtividade, em benefício dos países ricos, devendo os demais ajustar-se às imposições daqueles países. E foi precisamente isto o que ocorreu, nos últimos dez anos, no contexto de governos que aderiram a linhas de ação fundadas no neoliberalismo. Podem ser citadas, como exemplo, medidas com vistas ao controle do déficit fiscal e da inflação, assim como a implementação de políticas cujas prioridades têm se orientado, fundamentalmente, para o controle do déficit público e da dívida pública interna e externa, objetivos que levam à sujeição aos ditames de organismos internacionais, impondo-se políticas monetárias e de cortes orçamentários23 que vêm incidindo nos programas sociais ou naqueles que poderiam conduzir a uma melhor repartição da renda. Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia de 2001, em entrevista afirmava com propriedade (Caramel, 2001) que “a liberalização comercial contribuiu para a degradação das economias de muitos países em desenvolvimento porque os expôs à incerteza dos mercados internacionais”. Essa liberalização comercial, segundo ele, “foi planejada pelos países ocidentais para os países ocidentais dando muito pouca atenção a suas conseqüências sobre os demais países. Assim, eles conseguiram vantagens desproporcionais. E as regiões mais pobres do mundo hoje estão piores devido aos efeitos do comércio”. 23 No caso da Espanha, o gasto social passou de 24% do PIB em 1994, para 20% em 2000. Essa diminuição, no entanto, segundo Navarro (2002) não se deve à globalização ou à integração econômica, mas aos interesses do capital financeiro das classes dominantes que se beneficiam com as políticas regressivas. Em outras palavras, nos deparamos, hoje, com enormes contradições no seio do capitalismo, tanto no que diz respeito ao privilegiamento dos investimentos especulativos, frente aos produtivos24, como no que concerne à coexistência de hiperprodução e subconsumo, pois, tal como ressalta Navarro (2002), o crescimento das desigualdades ocorre em um mundo em que, por um lado, se tenta frear a produção e, por outro, uma criança morre de fome a cada dois segundos, em um total de 14 milhões por ano, o equivalente a 60 bombas idênticas à que foi lançada sobre Hiroshima. As novas regras que passaram a dominar o intercâmbio comercial entre os países sofreram alterações significativas a partir da criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), em janeiro de 1995. Um dos aspectos de maior importância, para os países subdesenvolvidos, certamente reside no pressuposto proclamado quando da criação da OMC, segundo o qual as regras introduzidas para os “direitos de propriedade intelectual” provocariam o aumento da transferência e difusão de tecnologia, incremento do investimento direto estrangeiro e reforço da pesquisa e do desenvolvimento locais. A experiência acumulada, contudo, não permite fazer fé nesta suposição. Antes, o sentimento é o oposto, em especial pelo fato de que os mencionados direitos, já nos primórdios das negociações sobre o tema, explicitamente estipulavam que os mesmos terão por base o Artigo 1 do GATT (General Agreement on Tarifs and Trade). O mencionado artigo reza que todo Estadomembro goza da liberdade de perseguir seu próprio regime de proteção da propriedade intelectual, podendo fazer uso dessa liberdade arbritariamente e de forma discriminatória contra produtos ou mercadorias importadas de outro país. O Acordo Final firmado, particularmente no que tange aos chamados TRIPs (Trade Related Intellectual Property Rights Agreement) 25, além de representar uma transferência de poder sem precedentes, das nações para corporações transnacionais, pode de fato ser considerado, nas palavras 24 Segundo Navarro (2002) as políticas neoliberais se caracterizam por dois aspectos: um, a desregulamentação dos mercados financeiros, gerando uma movimentação diária de 1,7 trilhão de dólares, a maior parte de natureza especulativa; o outro, relaciona-se ao enorme crescimento da desigualdade de renda, no plano internacional, de tal forma que, tão somente 220 pessoas mais ricas acumulam a mesma renda que corresponde a 45% da população mundial. 25 Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (Acordos ADPIC, assim referidos, a partir de agora, ao longo do texto). Além deste e do GATT, outros dois acordos firmados no âmbito da OMC apresentam impacto sobre o setor saúde: o Acordo que trata de obstáculos técnicos ao comércio e o que versa sobre a aplicação de medidas sanitárias e fitosanitárias. de Balasubramaniam “o acordo com maior grau de não-transperência, desprovido de responsabilidade pública e antipovo e pró transnacionais da história das negociações e acordos internacionais. O acordo TRIPs, em particular, negará a bilhões de pobres (homens, mulheres e crianças) de todo o mundo, o acesso até mesmo a um número limitado de medicamentos essenciais para o tratamento de doenças comuns” (Balasubramaniam, 1998). As conseqüências, seja para o caso específico do Brasil, seja para países com características socioeconômicas distintas, já podem ser detectadas, sendo o caso dos anti-retrovirais, para a AIDS, apenas um exemplo que ilustra mui apropriadamente, o conflito de interesses em jogo (Barros, 2001). No contexto da crise representada, sobretudo, pela pandemia da AIDS e como fruto de pressões, tanto de ONGs, como dos próprios governos de países subdesenvolvidos, a Conferência Ministerial, realizada em Doha, em novembro de 2001, a despeito das pressões da indústria farmacêutica e de alguns países desenvolvidos, em sua declaração final, terminou por aceitar que a gravidade de alguns problemas que afetam muitos países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos contribuiu para que se concordasse que “os Acordos TRIPs não devem impedir os Estados-membros de tomar medidas para proteger a saúde pública. E ainda que reiterando nosso interesse nos mencionados Acordos, afirmamos que os mesmos podem e devem ser interpretados e implementados de forma a apoiar o direito dos membros da OMC a proteger a saúde pública e, em particular, a promover o acesso dos medicamentos para todos”. A posição da delegação brasileira na mencionada Conferência foi muita clara e incisiva no sentido de que “há circunstâncias em que os conflitos de interesse hão de exigir dos Estados o exercício de sua suprema responsabilidade política...O Brasil promove e acata os direitos de propriedade intelectual. No entanto, se as circunstâncias o requerem, tal como outros países, o Brasil não hesitará em fazer uso pleno da flexibilidade permitida pelos Acordos TRIPs no sentido de salvaguardar a saúde dos seus cidadãos” (apud Correa, 2002). Infelizmente, a reunião da OMC, realizada em dezembro de 2002, e que fora agendada no encontro de Doha não manteve coerência com os postulados da mesma, tendo os EUA, com apoio indireto da UE, bloqueado a aprovação de acordo pelo qual os países pobres poderiam importar medicamentos básicos sem a autorização dos laboratórios proprietários da patente. Houve pressão para que países africanos restringissem seu direito a importar genéricos para tratar um elenco de 15 enfermidades, entre as quais malária, AIDS e tuberculose. Países produtores de genéricos, como Brasil e Índia e algumas ONGs, insistiram, sem êxito, para que outras doenças, como a hepatite C e B, asma, diabetes, pneumonia e doenças cardiovasculares, viessem a ser incluídas na lista (Bayon, 2002). Segundo a ONG Intermon- Oxfam, o fracasso nas negociações para que países pobres venham a ter acesso a medicamentos genéricos baratos não deve ser atribuído, exclusivamente, à “escandalosa” iniciativa dos EUA, mas também a UE, Canadá e Suiça (Anônimo, 2002d). Nova Conferência Ministerial, realizada em setembro de 2003 em Cancún, México, deveria ter apreciado acordo firmado no âmbito do Conselho Geral da OMC, após intensas e difíceis negociações. Pelo mencionado acordo, nações pobres ficariam autorizadas, em virtude de crises de saúde pública, a importar genéricos de países em desenvolvimento. Firmaram o documento inicial cinco países, contemplando detentores de patentes (EUA), fabricantes de genéricos (Índia e Brasil) e países, vítimas de problemas de saúde pública (Quênia e África do Sul). Os EUA impuseram várias restrições às exportações referidas, a exemplo de sistemas de rotulação e embalagens que estabeleçam diferenças entre os genéricos e os produtos equivalentes patenteados, com o propósito de inibir eventual reexportação. Apesar das críticas de ONGs como MSFe Oxfam, os termos dos acordo foram vistos de forma favorável pelo Brasil. A reunião em questão, no entanto, fracassou profundamente, tendo o Brasil e outros países subdesenvolvidos liderado a reação a uma alteração na pauta pretendida pelos países centrais. Sob a ótica do setor saúde, as normas de propriedade intelectual terão de considerar os interesses de saúde pública como uma prioridade. As normas vigentes, implementadas nos países desenvolvidos, podem não ser as mais adequadas para países que têm sérias dificuldades em satisfazer as necessidades de saúde da sua população, tendo, pois, de lançar mão da flexibilidade de dispositivos e salvaguardas, incluídos nos novos acordos. Cumpre, ademais, ressaltar que a indústria tem utilizado artimanhas para prorrogar, tanto quanto possível, a vigência das patentes. Correa exemplifica, apropriadamente, com uma série de fármacos, algumas das estratégias adotadas, em relação à paroxetina, amlodipino, claritromicina, fluconazol, fexofenadina, eritropoeitina recombinante e ofloxacino/levofloxacino. Segundo o autor, a flexibilidade existente na regulamentação patentária, nos casos exemplificados, foi utilizada para impedir uma competição legítima, interferindo, desta forma, na disponibilidade de produtos alternativos, com preços mais acessíveis. Na oportunidade, também se evidencia o fato de que, a cada ano, grande quantidade de patentes é outorgada sobre produtos de menor relevância ou sobre substâncias preexistentes na natureza e que, mais que inventadas, foram descobertas (Correa, 2001). Vale recordar, ademais que, a partir dos mais recentes estudos e descobertas objetivas, resultantes dos avanços nos campos da engenharia genética e da biotecnologia, particularmente com o mapeamento do genoma humano aliás, alcançados, simultaneamente, por um consórcio de instituições públicas e pela empresa Celera Genomics, vieram à tona, outra vez, os conflitos de interesses entre os propósitos mercantis e aqueles relacionados ao bem comum. Os mencionados conflitos se evidenciam, claramente, na questão do patenteamento de organismos vivos. Ressalte-se que, ao passo que qualquer pessoa interessada pode ter acesso aos dados do Projeto Genoma Humano, desde que se comprometa a não fazer comércio com a informação recebida, o mesmo não ocorre em relação ao banco de dados da empresa antes mencionada, devendo-se salientar que Celera se beneficiou, desde o princípio, da informação disponibilizada pelo consórcio público internacional. Já no ano de 2000, a empresa havia dado entrada ao pedido de 7000 patentes provisórias, alegando ter chegado a descobertas em relação às quais pretendia solicitar, formalmente o patenteamento em um prazo de um ano. O propósito era, segundo o seu presidente, o cientista Craig Venter, selecionar entre 100 e 300 genes que contem com os pré-requisitos de utilização comercial e patenteá-los. Em depoimento dado em audiência pública, realizada em abril de 2000, no Congresso dos EUA, o mencionado cientista afirmou que “mudanças na lei de patentes devem ser consideradas no contexto dos efeitos que terão nos esforços que realizam as companhias farmacêuticas para descobrir novos fármacos”. Alegava, também, que era necessário proteger a indústria, considerando que ela tinha que fazer frente a gastos da ordem de 300 a 800 milhões de dólares a cada vez que tinha que corresponder às exigências da FDA para aprovar um novo medicamento. O cientista mencionado declarava, ademais, falando em nome da Biotechnological Industry Organization (BIO),26 em outra audiência, realizada mais adiante (julho de 2001) que “o público deve ter confiança de que poderá beneficiar-se de todo o desenvolvimento biotecnológico sem temer que as informações obtidas venham a ser usadas contra ele...Atualmente, 117 produtos biotecnológicos estão ajudando 250 milhões de pessoas em todo o mundo. Outros 350 medicamentos, voltados para o combate de 250 doenças, encontram-se em fase final de desenvolvimento. Estes produtos se dirigem a enfermidades até agora, descobertas...BIO vem apoiando, faz tempo, a legislação federal que assegurará que a informação médica de uma pessoa, incluindo informação genética, não será mal utilizada. Conseqüentemente, BIO respalda a legislação, cuidadosamente, elaborada que proíbe a discriminação em seguros de saúde, baseada na informação genética” (apud Ron, 2002). Na aparência, portanto, pareceria que os conflitos entre investigação científica a serviço da humanidade e estratégias e interesses empresariais estariam solucionados (sic).

 

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